terça-feira, 20 de novembro de 2012

Oh, pá! É que vês com os olhos do coração!

"Este texto foi escrito em Nampula, no dia 09 de setembro. Somente agora decidi socializar."
Hoje, ao conversar com o amigo Matola ouvi esta frase que ecoou nos meus ouvidos e não abandou minha memória. Estávamos a caminhar pelas ruas de Nampula, capital da província com o mesmo nome e conversávamos sobre a situação social que se apresentava aos meus olhos.
Nesta postagem, falarei do cotidiano, mas não de belas paisagens ou pitorescas ações e sim de um cotidiano que nos entristece: a pobreza. Nampula é a segunda cidade de país. Como em toda cidade grande, temos a oportunidade de ver o grave problema da distribuição desigual de renda. Logo após nossa chegada ao hotel, fomos caminhar em busca de um restaurante e, depois de saciada nossa fome, fomos caminhando até a feira local. Esta feira ocorre somente aos domingos e é famosa por vender o que se posso imaginar: de móveis novos a roupas e calçados usados.
No caminho ao restaurante me deparei com uma criança, dormindo sobre um banco de paragem de machimbombo (ponto/ parada de ônibus). Pelo aspecto há inúmeros dias não sabe o que é um banho e pelo jeito largado de dormir ao calor de quase 30 graus, devia estar há um bom tempo sem alimentar-se.
Durante nossa caminhada vimos mais miséria a, teimosamente, surgir aos nossos olhos de estrangeiros. Não que não haja miséria no Brasil, há sim, mas parece que aqui é mais profunda, dói mais! Passamos por um local que não sei se posso classificar como favela ou bairro. Só sei que não há nenhuma infraestrutura e saneamento: ruas sem pavimentação, cobertas por águas servidas e muito lixo. Neste cenário, algumas crianças a brincar descalças e com pouca roupa. Como sobrevivem a tanta sujeira?! É um a incógnita! Mais adiante vejo as casas e mais lixo espalhado pelas ruas. Claro que não há nenhum container de recolha de dejetos. Em Maputo vemos muitos espalhados, pelas ruas, mas em Nampula não consegui ver nenhum!
Chegamos a feira, uma multidão a caminhar e outros a tentar vender seus produtos, muitos pirateados (invasão chinesa). Roupas, utensílios domésticos, móveis, comida artesanato, capulanas, etc. Para irmos a esta feira, fomos avisados para não usarmos bolsas e ter dinheiro aparente, pois são comuns os casos de roubos, em especial aos de fora, facilmente reconhecidos. E lá fomos nós a olhar. A feira é organizada em setores e isto facilita a caminhada. Muita gente, muitas línguas diferentes, muito calor e muita poeira! Para amenizar o incômodo da poeira ruas os vendedores molham a terra, aí fica uma laminha fina. Sinceramente não sei o que é pior!
Para nós, estrangeiras e brancas (Sim, aqui sou branca!) os preços quadruplicam. Basta perguntarmos um preço e logo percebemos o vendedor a calcular o quanto irá nos extorquir. Como já sabemos desta característica, todos os estrangeiros aprendem a arte da pechincha. Um colar de cem meticais sai por cinquenta. Comprei, por cem meticais, uma capulana que iniciou a negociação em duzentos e cinquenta. E assim vamos a descobrir a arte do menor preço. Uma boa dica é ir sempre com um moçambicano.  
Na volta mais passamos por vendedores de comida; peixe seco, cheios de moscas a e vendedoras de uma comida frita que parece bolinho de chuva, mas, sinceramente, jamais provarei para saber se é! Os tais bolinhos brilham ao sol e sabe-se lá em que condições foram fritos. Ficam expostos ao sol, a poeira e a tal laminha de que falei. Como diria um pónei maldito: que nojinho!. Não sei como conseguem sobreviver a tanta falta de condições de higiene. Me entristeço ao pensar nisso!
Outro momento que entristeceu é ver muitas crianças a trabalhar nesta feira: vendedores de sacolas plásticas, de artesanato, comida, roupas, etc. Crianças e jovens que tem sua infância roubada pela miséria. Apesar da minha vivência, não consigo achar natural estas situações. É aí que vem a frase do Matola: Vês com os olhos do coração.
Como ver isto e não ficar fazer uma reflexão?! Que características têm os seres humanos para deixarem seus irmãos passarem por situações de privações enquanto descansam confortavelmente em seus lares?  Como ficar alheio a miséria, a fome (violências simbólicas) e a falta de condições mínimas de vida urbana? Talvez esteja assim após a leitura de um livro de Mia Couto, no qual ele levanta exatamente esta questão: após tanto sofrimento do povo moçambicano (colonização) agora tem que se entender entre si.
Espero, do fundo do coração, que este povo consiga sair deste estado de desequilíbrio social. Acredito que para tal muitos haverão de lutar e trabalhar arduamente em programas sociais e governamentais. Quem vê a miséria de erro é capaz de entender a importância de um programa social de distribuição de renda. Fico feliz por saber que tenho a oportunidade de colaborar na reconstrução desta nação que estou aprendendo a sentir como minha. Hoje posso dizer que sou brasilicana (uma mistura de brasileira com moçambicana).
Pai, sei que você não tinha o mesmo pensamento romântico que tenho, talvez você nem concordasse com as minhas palavras, mas este é o meu sentimento após a caminhada domingueira. Amanhã sairei da capital rumo aos distritos e sei que verei muito mais necessidades. Espero que meu velho coração aguente o tranco!
Mais uma vez, despeço-me de todos a moda moçambicana: fiquem bem!